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terça-feira, 30 de agosto de 2016


 

 

CARTA A UM JOVEM MARATONISTA

 

Desde o início dos tempos, o fiat lux, o sol nasce para todos. Às vezes, inclemente e impiedoso. Outras vezes, lânguido, dissimulado, afável e se escondendo por detrás de nuvens sombrias. De uma maneira ou de outra, no amanhecer, você, corredor, faz sua escolha: determinar um estilo de vida invejável.  O lado belo da história da vida é construído sob os atos mais banais, simples, rotineiros. Durante o dia ou à noite - pois há aquele que prefere respeitar o seu próprio ciclo circadiano determinado e adaptado ao seu afazer diário -constrói-se uma paixão por este esporte que pode mudar definitivamente o rumo da vida, tanto físico quanto emocional.

Portanto, meu caro amigo corredor, maratonista ou ultramaratonista ou ainda iminente titular dos míticos quarenta e dois quilômetros e alguns metros, sofridos e prazerosos, saiba que não é necessário fazer um pacto fáustico para se tornar um amante permanente e incansável do movimento do corpo, seguindo os passos dos nossos ancestrais numa cruzada filogenética com o propósito de perpetuar a nossa espécie. É primordial, sim, que seja disciplinado e feliz com os treinos, não importando o que queira correr, nos entremeios, nas competições etc.: 5km, 10km, meia ou maratona completa, ultramaratona e assim por diante..., levando sempre em consideração as variantes, o descansar, o respeitar das manifestações indicativas do corpo. 

 

 

É de inestimável importância também que carregue ad infinitum o estado de espírito do ser maratonista. Quero dizer, o desvencilhar constante daquele eterno estado de competição, tão prejudicial ao intuito de ser longevo, objetivo maior do amadorismo. É claro que você precisa de um estímulo, a fim de se manter em equilíbrio com o esporte: a competição consigo mesmo. É neste fulcro principal que giram o amadorismo e o deleite de continuar, de ser perene. Insere-se da mesma forma o grande prazer de estar participando de um grupo de seres que carrega as mesmas alegrias, os mesmos objetivos, as mesmas dificuldades e por vezes as mesmas decepções. É por isso que, em síntese, o corredor é um ser gregário, porque sempre necessita de um conselho, de uma opinião, de uma ajuda providencial nos momentos críticos. E saiba que não é apenas a endorfina, muitas vezes excretada no momento mais crucial de uma maratona, que certamente lhe inunda de felicidade e autoestima, mas também o estímulo sincero de um colega.

Não duvide, nem se engane. Cada indivíduo tem a sua particularidade na prática do esporte, assim como há idiossincrasias deste mesmo indivíduo diante do comportamento social, familiar, trabalho etc. Há seres humanos carregados predominantemente de fibras musculares rápidas, tensas, próprias às provas curtas, velozes – as chamadas fibras brancas. Outros seres, ao contrário, possuem em profusão fibras vermelhas, lentas, resistentes e inerentes a você, maratonista, que se propôs a ir tão longínquo. Assim, por perscrutação própria e num lance de autoconhecimento, na maioria das vezes plausíveis, é de bom

 

alvitre que crie seu estilo, porque desta maneira seu desempenho sempre será mais confortável, confiável e isento de lesões intermitentes.

 

         Com toda esta prudência, participará sem dúvida de um sem-número de maratonas. E chegará à maturidade atingindo um dos feitos mais magnânimos no esporte: permanecer ativo, participante e frequente até os últimos momentos. Mas, muito antes disso, você poderá se gabar de ter viajado por cidades nas quais desbravou ruas, avenidas e parques com seus próprios passos, assim como poderá expor as medalhas a toda gente, como um triunfo máximo e de extremo simbolismo.

                            E last but not least a promoção da saúde. A melhora da condição de vida, a prevenção das doenças metabólicas surgem em osmose e como condição sine qua non para uma vida saudável. E saiba ainda que ser maratonista não é etiqueta de envelhecimento precoce. A oxidação celular, a produção de radicais livres são fenômenos naturais na fisiologia humana. E, ao contrário, quando equilibrados são bem-tolerados e aproveitados para o bem do próprio corpo. Mais uma vez, o que se deve evitar sempre é o excesso. Mas você que não pretende ser um maratonista de elite, um atleta profissional com treinos semanais de mais de duzentos quilômetros em alta velocidade, não padecerá deste mal, tão propalado pelos leigos ou falsos connoisseurs da fisiologia do movimento humano.

                  

 

                   Você terá um mundo à frente, caro maratonista! Um sem-número de momentos felizes, alguns momentos de tristeza, é claro, mas desprezíveis. É o simulacro da vida. Mas o importante é que construirá um arcabouço de histórias atraentes e mágicas para, quando atingir a maturidade, quando as lembranças revolvem-se no mais fundo da memória, permitir-se contar sua façanha aos seus netos embevecidos... E contar ainda a priori que você não foi apenas um espectador, mas sim o protagonista de todos os acontecimentos, o construtor da própria epopeia.

 

                   Então, sem falsa modéstia, parafraseando Tom Wolfe, se sentirá o centro do universo para sempre. E é assim que um maratonista deve se sentir mesmo, afirmo com consciência. Porque desde que o soldado-mensageiro Filípedes, quase meio século antes de Cristo, exausto e estropiado, partiu para Atenas a anunciar a vitória sobre os persas, que se sabe “nenhum atleta depende tanto de obstinação quanto o corredor de Maratona, o especialista em longa distância. É dele o teste épico, a provação destruidora do fôlego e dos músculos.”

                  

 

 

 

 

 

 

 

 

 

                   Enfim, o sol no lusco-fusco também indica o horizonte e é no poema de mesmo nome que o poeta Fernando Pessoa menciona os desejos, os sonhos:

 

                                “O sonho é ver as formas invisíveis

  Da distância imprecisa, e, com sensíveis

 Movimentos da esperança e da vontade,

                       Buscar na linha fria do horizonte

 A árvore, a praia, a flor, a ave, a fonte –....”