CARTA A UM
JOVEM MARATONISTA
Desde o início dos tempos, o
fiat lux, o sol nasce para todos. Às vezes, inclemente e impiedoso. Outras
vezes, lânguido, dissimulado, afável e se escondendo por detrás de nuvens
sombrias. De uma maneira ou de outra, no amanhecer, você, corredor, faz sua
escolha: determinar um estilo de vida invejável. O lado belo da história da vida é construído
sob os atos mais banais, simples, rotineiros. Durante o dia ou à noite - pois
há aquele que prefere respeitar o seu próprio ciclo circadiano determinado e
adaptado ao seu afazer diário -constrói-se uma paixão por este esporte que pode
mudar definitivamente o rumo da vida, tanto físico quanto emocional.
Portanto, meu caro amigo
corredor, maratonista ou ultramaratonista ou ainda iminente titular dos míticos
quarenta e dois quilômetros e alguns metros, sofridos e prazerosos, saiba que
não é necessário fazer um pacto fáustico para se tornar um amante permanente e
incansável do movimento do corpo, seguindo os passos dos nossos ancestrais numa
cruzada filogenética com o propósito de perpetuar a nossa espécie. É
primordial, sim, que seja disciplinado e feliz com os treinos, não importando o
que queira correr, nos entremeios, nas competições etc.: 5km, 10km, meia ou
maratona completa, ultramaratona e assim por diante..., levando sempre em
consideração as variantes, o descansar, o respeitar das manifestações
indicativas do corpo.
É de inestimável importância
também que carregue ad infinitum o estado de espírito do ser maratonista. Quero
dizer, o desvencilhar constante daquele eterno estado de competição, tão
prejudicial ao intuito de ser longevo, objetivo maior do amadorismo. É claro
que você precisa de um estímulo, a fim de se manter em equilíbrio com o
esporte: a competição consigo mesmo. É neste fulcro principal que giram o
amadorismo e o deleite de continuar, de ser perene. Insere-se da mesma forma o
grande prazer de estar participando de um grupo de seres que carrega as mesmas
alegrias, os mesmos objetivos, as mesmas dificuldades e por vezes as mesmas
decepções. É por isso que, em síntese, o corredor é um ser gregário, porque
sempre necessita de um conselho, de uma opinião, de uma ajuda providencial nos
momentos críticos. E saiba que não é apenas a endorfina, muitas vezes excretada
no momento mais crucial de uma maratona, que certamente lhe inunda de
felicidade e autoestima, mas também o estímulo sincero de um colega.
Não duvide, nem se engane. Cada
indivíduo tem a sua particularidade na prática do esporte, assim como há
idiossincrasias deste mesmo indivíduo diante do comportamento social, familiar,
trabalho etc. Há seres humanos carregados predominantemente de fibras
musculares rápidas, tensas, próprias às provas curtas, velozes – as chamadas
fibras brancas. Outros seres, ao contrário, possuem em profusão fibras
vermelhas, lentas, resistentes e inerentes a você, maratonista, que se propôs a
ir tão longínquo. Assim, por perscrutação própria e num lance de autoconhecimento,
na maioria das vezes plausíveis, é de bom
alvitre que crie seu estilo, porque desta maneira seu
desempenho sempre será mais confortável, confiável e isento de lesões
intermitentes.
Com toda esta
prudência, participará sem dúvida de um sem-número de maratonas. E chegará à
maturidade atingindo um dos feitos mais magnânimos no esporte: permanecer
ativo, participante e frequente até os últimos momentos. Mas, muito antes disso,
você poderá se gabar de ter viajado por cidades nas quais desbravou ruas,
avenidas e parques com seus próprios passos, assim como poderá expor as medalhas
a toda gente, como um triunfo máximo e de extremo simbolismo.
E
last but not least a promoção da
saúde. A melhora da condição de vida, a prevenção das doenças metabólicas
surgem em osmose e como condição sine qua non para uma vida saudável. E saiba
ainda que ser maratonista não é etiqueta de envelhecimento precoce. A oxidação
celular, a produção de radicais livres são fenômenos naturais na fisiologia
humana. E, ao contrário, quando equilibrados são bem-tolerados e aproveitados para
o bem do próprio corpo. Mais uma vez, o que se deve evitar sempre é o excesso. Mas
você que não pretende ser um maratonista de elite, um atleta profissional com
treinos semanais de mais de duzentos quilômetros em alta velocidade, não
padecerá deste mal, tão propalado pelos leigos ou falsos connoisseurs da fisiologia do movimento humano.
Você terá um mundo à frente, caro maratonista! Um
sem-número de momentos felizes, alguns momentos de tristeza, é claro, mas
desprezíveis. É o simulacro da vida. Mas o importante é que construirá um
arcabouço de histórias atraentes e mágicas para, quando atingir a maturidade,
quando as lembranças revolvem-se no mais fundo da memória, permitir-se contar
sua façanha aos seus netos embevecidos... E contar ainda a priori que você não foi apenas um espectador, mas sim o
protagonista de todos os acontecimentos, o construtor da própria epopeia.
Então, sem falsa modéstia, parafraseando Tom
Wolfe, se sentirá o centro do universo para sempre. E é assim que um
maratonista deve se sentir mesmo, afirmo com consciência. Porque desde que o
soldado-mensageiro Filípedes, quase meio século antes de Cristo, exausto e
estropiado, partiu para Atenas a anunciar a vitória sobre os persas, que se
sabe “nenhum atleta depende tanto de
obstinação quanto o corredor de Maratona, o especialista em longa distância. É
dele o teste épico, a provação destruidora do fôlego e dos músculos.”
Enfim, o sol no lusco-fusco também indica o
horizonte e é no poema de mesmo nome que o poeta Fernando Pessoa menciona os desejos,
os sonhos:
“O sonho é ver as formas invisíveis
Da
distância imprecisa, e, com sensíveis
Movimentos
da esperança e da vontade,
Buscar na linha fria do horizonte
A
árvore, a praia, a flor, a ave, a fonte –....”