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domingo, 30 de agosto de 2020

SIMONE DE BEAUVOIR, uma vida

 

              LEITURA DA SEMANA#1 SIMONE DE BEAUVOIR – UM VIDA  ​​
       
               Ainda no início da adolescência ela já sabia o que queria ser: filósofa, escritora. Todos os dias, quando voltava do colégio, conversava com a amiga Zaza falando de seus sonhos, seus anseios, suas leituras. Com fervor, lia os filósofos de jeito ultrarrápido e compulsivamente Hegel, Sören Kierkegaard, Husserl e principalmente o favorito Henry Bergson. Tinha a consciência de seu poder de reflexão, autossuficiência etc, pois aos sete anos já havia escrito uma história de cem páginas, Les malheurs de Marguerite – As desgraças de Marguerite -. ​​ Nascida numa família de burgueses católicos, conservadora e da direita francesa que aceitava a República, porém tinha pendência à aristocracia, à monarquia. Destarte, logo cedo para surpresa dos pais, Simone de Beauvoir se rebelou contra isso. Em toda sua juventude rechaçou o desejo da mãe em proporcionar-lhe um casamento tradicional e torná-la uma mulher católica fervorosa, mãe, dona de casa. Abominou a ideia em receber o dote e, por fim, ser obediente incondicional ao marido, respeitando a condição da mulher francesa da época. Simone queria ser diferente. ​​ Em O segundo Sexo, a obra máxima, alcança um escopo muito além da célebre frase “ninguém nasce mulher: torna-se mulher” e aprofunda “concretamente na busca incansável pela independência da mulher”. Portanto, ela diz logo na introdução que “não se trata aqui de enunciar verdades eternas, mas de descrever a fundo universalmente sobre o qual se desenvolve toda a existência feminina singular.” ​​ Esta recente biografia de Kate Kirkpatrick – bem verdade que toneladas de páginas já foram escritas sobre a vida de Beauvoir – envereda mais pelo caminho de seus amores “contingentes”, revelando fatos inusitados e desconhecidos do grande público relativos ao pacto que ela fizera com Sartre ainda em plena juventude. ​​ O pacto que eles consagraram – Sartre com vinte e três anos e Simone com apenas dezenove anos de idade – logo depois de sair do cinema numa noite agradável (assistiram ao “Tempestade sobre a Ásia”, filme soviético dirigido por Vsevolod Pudovski), no final de uma caminhada pelos Champs-Élysèes. Chegaram até ao Carrossel do Louvre e ali sentados , num banco de pedra, havendo como testemunha uma velha que alimentava um gato miando, faminto, selaram o contrato de dois anos: “não somente nenhum de nós nunca mentiria ao outro, como também nada lhe esconderia”. Sartre explicou mais efusiva e detalhadamente que “entre nós, trata-se de um amor “necessário”, convém que conheçamos também amores “contingentes”. ​​ Tempos depois, o contrato seria renovado para a eternidade. ​​ Simone de Beauvoir se converteu em celebridade no mundo inteiro, assim como Jean-Paul Sartre. Eles viveram juntos plenamente por mais de meio século. Sartre se envolveu com dezenas de amores “contingentes”: jovens atrizes, escritoras, mulheres que se transformaram em celebridades no mundo das artes. E Simone da mesma maneira, se apaixonou por mulheres e homens que chegaram também ao estrelato mais tarde. O amor mais “contingente” dela, dizem que foi o escritor americano Nelson Algren, embora Claude Lanzmann tenha despertado um amor fulgurante no início do relacionamento. Sem dúvida, no entanto, o único amor “essencial” Jean-Paul Sartre ultrapassou a todos os outros “contingentes”. Por isso, permanecem juntos para a eternidade no Cemitério de Montparnasse, como num drama shakespeariano. ​​ Esta biografia também revela a filósofa combativa, tenaz antirracista, defensora implacável da causa feminista, dos oprimidos, humilhados e ofendidos. E mostra uma escritora irredutível no enfrentamento ao establishment, tendo em mãos apenas a sua caneta - e que caneta prolífera!! Ela dizia que “a melhor maneira de explodir um saco de ar quente não é acariciando-o, e sim cravando as unhas nele”. Apoiou com veemência o anticolonialismo francês e quase foi presa pelo governo do general De Gaulle (1890-1970). ​​ Beauvoir viveu uma vida fascinante. Claro, houve momentos de sofrimentos, de dúvidas, angústias, de reflexões sobre o seu ateísmo. Mas ela era existencialista, humanista e viveu ao lado “do amigo incomparável de meu pensamento”, contrariando tudo aquilo que sua mãe planejara. ​​ Em verdade, ela foi a mulher que fincou as bases do feminismo do século XX. E inspirou um sem-número de futuras defensoras do Movimento de Libertação da Mulher. ​​ Eis aqui uma extraordinária biografia para quem quer saber mais sobre o ilustre casal intelectual do século passado. Em síntese, tenho a sensação, apesar de críticas em contrário, de que “se há algo a aprender com a vida de Simone de Beauvoir é isso: ninguém se torna o que é sozinho !”

segunda-feira, 10 de agosto de 2020

A Montanha Mágica


                         


                            

                                                        A MONTANHA MÁGICA

 

Mil e uma noites não foram necessárias para desvendar o mistério da montanha de mil páginas deste consagrado romance mundialmente. No entanto, vários dias concomitantes ocuparam-me, dias mágicos, encantados e felizes resgatados de dentro da angústia da pandemia. Lembrei-me das noites silenciosas do rei Shariar diante de Sherazade, a cada noite mais enfeitiçado e esquecendo de seus propósitosprimários, de seu mundo excruciante e desejoso de vingança. Me lembrei até de Michel Foucault (1926-1984) analisando a narrativa, a oralidade da cativante contadora de histórias: “Penso que em As mil e uma noites”, falava-se, narrava-se até o amanhecer para afastar a morte, para adiar o prazo deste desenlace que deveria fechar a boca da narradora.” Mas, neste monumental romance de formação, que me dei a ousadia de resenhar,Thomas Mann (1875-1955) não escreve apenas sobre a morte senão sobre a vida, sobre o tempo, política, filosofia, amor e ódio...

Mann ganhou o prêmio Nobel de literatura pelo aclamado “Os Buddenbrooks”, embora o mais popular seja mesmo “Morte em Veneza”. O escritor, vindo de família alemã rica, abastada, burguesa retrata com frequência essa condição em seus inúmeros livros. Era filho de brasileira, Julia da Silva Bruhns (1851-1923) filha de alemão e mãe portuguesa latifundiários na região de Paraty, época de D. Pedro II. Referindo-se a isso, uma vez ele disse que tinha orgulho de ter o sangue brasileiro correndo em suas veias: “...creio que à origem latina e brasileira devo certa clareza de estilo. E, para dizer aos críticos, o temperamento pouco germânico. Li apaixonadamente os escritores alemães, clássicos russos, franceses e ingleses, porém estou certo que a influência mais decisiva sobre a minha obra resulta do sangue brasileiro que herdei de minha mãe.”

Em “A Montanha Mágica”, a opus Magnum, observa-se a exposição da alegria na cena do carnaval, as reuniões festivas e debochadas, um sem-número de confraternizações regadas à comida pantagruélica.  Destarte, era uma vida de felicidade e opulência. Certamente ele retratava ali a sua própria vida, assim como da mesma forma nos outros romances.  Embora também mencionasse os momentos sombrios, difíceis, reflexo dos suicídios de suas duas filhas – Julia e Carla -, a fuga da Europa, assolada pelo nazifascismo, para os Estados Unidos. Junto a esses fatos a lida com o homossexualismo em anos soturnos na Europa e no mundo. No exílio americano converteu-se em ferozcombatente ao führer Adolf Hitler. Dizia sempre que “onde eu estiver a Alemanha sempre estará”. Voltou tempos depois, já naturalizado americano, para Zurique onde está sepultado.

A Montanha Mágica” é uma narrativa sobre o tempo. Em relação a isso, antes de iniciar a longa história Thomas Mann avisa que “queremos narrar a vida de Hans Castorp – não por ele –“e que “os fatos aqui referidos se passaram há muitos anos já. Estão, por assim dizer recobertos pela pátina do tempo, e em absoluto não podem ser narrados senão na forma de um passado remoto.”

Então Hans Castorp, o protagonista, jovem engenheiro naval recém-formado de Hamburgo, rico e herdeiro de vultuosa fortuna, sempre protelando o início da profissão, resolve visitar o primo Joachim lá no alto das montanhas dos Alpes suíços num sanatório para tuberculosos – só para a nata da burguesia europeia e mundial. Desde a longa viagem de trem subindo as montanhas até o único primeiro dia no Sanatório Internacional Berghof, onde o primo estava em tratamento há algum tempo, a narrativa se arrasta em longas duzentas páginas. O tempo é elástico ali. Ninguém tem pressa. Todos sabem das chances de sobrevivência. E Hans Castorp chega para ficar apenas três semanas como visitante. À primeira vista ele não gostou.

- Não! Para falar com franqueza, não acho a paisagem assim tão formidável !

Nesse mesmo primeiro dia, ao ser apresentado ao dr. Krokowski, disse que passaria ali apenas três semanas em visita ao primo tuberculoso e que gozava de perfeita saúde.

- Será? – perguntou o dr. Krokowski, avançando a cabeça obliquamente, como para caçoar, enquanto o seu sorriso se acentuava – Nesse caso o senhor é um fenômeno digno de ser estudado. Eu, pelo menos, ainda não encontrei um homem de perfeita saúde...

Pouco tempo depois Hans Castorp conhece Settembrini, Lodovico Settembrini, um escritor humanista italiano de veia carbonária que já se encontrava ali também desde muito tempo. E o niilista italiano vai transfigurar-se num grande amigo e preceptor de nosso herói, pois possuía uma vasta cultura, apesar de sua incontrolável fanfarronice.

Aos poucos Castorp vai conhecendo toda aquela gente rica e modos burgueses ao extremo, gente toda em tratamento que se encontrava cinco vezes ao dia para refeições em sete grandes mesas separadas e ordenadas. Mesas de ricaços, topo exclusivo da pirâmide, mesas de, vamos dizer, menos ricos, as mesas dos aristocratas russo, dos “russos ordinários”... e assim se lavava a roupa suja da Europa no meio de pratos e mais pratos, digno de A Comilança de Marco Ferreri. Era o local onde se discutia sobre tudo. As mesas redondas permaneciam sempre completas, pois as mortes eram diárias, mas outros pensionistas chegavam imediatamente para ocupar os lugares vazios.

Chega o momento em que o nosso rico engenheiro conhece Mme. Chauchat e se apaixona. Clavdia Chauchat, uma suposta russa nobre que falava francês, despertou um sentimento arrebatador no “visitante e espectador desinteressado.” Ao passar pela primeira vez por Hans Castorp “ela esboçou um leve sorriso ao ver aqueles olhos e, segurando com a mão a trança que lhe cercava a cabeça levemente avançada, desceu à sua frente pela escada a passo elástico e silencioso.”

Dias depois, eles travaram um longo diálogo em francês – por quase vinte páginas do romance e sem tradução da editora Nova Fronteira sugerindo um enlace enredado no destrinchado empréstimo de uma lapiseira de prata!

Ao longo do romance vão surgindo diferentes personagens que vão e vêm. Settembrini encontra em Naphta – um judeu convertido ao cristianismo, à ordem dos Jesuítas – o seu oponente, debatedor feroz, intolerante, sectário. Porque Settembrini acreditava na concretude do homem, na ciência, e na negação da existência de Deus. E ao longo dos meses os ânimos se arrefeceram pouco a pouco redundando no....  evito o “spoiler”, caro leitor, para não estragar a sua futura leitura!

Pois bem, o romance é muito extenso, é fato, mas de uma beleza extraordinária. Abre todos os leques da existência humana através dos infindáveis diálogos. Comenta-se sobre a morte extensamente vis a vis o ambiente. Recorre-se sobre a religião à exaustão, sobre a mitologia e os tempos imemoriais. Fala-se sobre livros e o “efeito purificante e santificador da literatura, a destruição das paixões pelo conhecimento e pela palavra.”

Na realidade, mais uma vez, o tema desse vasto romance é o tempo. Pois que o personagem central Hans Castorp, que pretendia apenas visitar o primo nas montanhas de Davos, depois de diagnosticado com a tísica ia ficando semanas, meses, anos... “O tempo é o elemento da narrativa, assim como é o elemento da vida”, diz o narrador.

Dizem que o melhor livro de Thomas Mann, a verdadeira opus Magnum, seria o “Dr. Fausto”. Talvez seja mesmo. Porém ele próprio considerava “A Montanha Mágica” o livro que mais  mais apreciava.

Me arrependo com certo remorso de ter tantas vezes ao longo dos anos olhado sempre de esguelha para este livro lá no alto da minha biblioteca sem nunca o ter resgatado de sua inércia. Talvez por algum temor obscuro de sua grandeza. Ou talvez com medo do tempo que ele me auferiria. Mas agora faz parte do ganho, do acúmulo de meu conhecimento. É o que a literatura nos recompensa. E nos direciona, segundo Thomas Mann a “uma longa jornada rumo a si próprio.”