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sexta-feira, 1 de janeiro de 2021

MAR DE ROSA


           

MAR DE ROSA

 

 

                                                                                             Texto: Ney Cayres

 

 

            Um dedo de prosa não faz mal a ninguém. E de poesia também! Prosa e poesia formam desde sempre caminhos em paralelas. Na criação, no primeiro momento alimentam-se da mesma seiva. No seu destino, na sua separação, como seres univitelinos, levam consigo para sempre as suas origens, as suas matrizes, as suas confluências...

            João Guimarães Rosa iniciou sua carreira de escritor com poesia, - Magma-1936-que ganhou o prêmio da Academia Brasileira naquele ano, e só foi publicado post mortem  pela Editora Nova Fronteira.

            Dez anos depois desse prêmio outorgado pela “casa” de Machado de Assis, considerado o maior escritor da literatura brasileira do século dezenove, Rosa publica o seu primeiro livro de contos, Sagaranainiciando assim uma renovação na literatura brasileira, culminando com o enigmático, magnífico Grande Sertão: veredas, o qual mencionarei mais adiante.

            Sagarana, cujo título advém da junção do radical de origem alemã ‘saga”, canto heroico, e “rana”, palavra que vem do tupi indicando semelhança, proximidade, então algo assim como o simulacro de uma saga, Sagarana possui nove contos, para ser preciso. Dentre os quais destaco O Burrinho pedrês e A hora e a vez de Augusto Matraga.  Dois contos de atração extraordinária, nos quais Rosa insere o falar, a oralidade e o cotidiano do sertanejo, as bases fundamentais para o seu trabalho futuro. Especialmente, A hora..., que foi levado ao cinema, ao teatro e motivo de documentários e várias teses.

            Novamente, dez anos depois de Sagarana, portanto em 1956, ele publica o seu opus magnumsem sombra de dúvida, o Grande Sertão: Veredas. Aqui neste mar, Rosa nadou de braçadas! Aqui, emergiu de sua profunda veia criativa a prosa rosiana, transformadora e sedimentada lá atrás nos seus primeiros contos. Pois ele nasceu na cidadezinha de Cordisburgo em 1908, Minas Gerais. E desde menino foi um exímio observador do falar, do viver, da prosa sertaneja dos Gerais. Depois  estudou pra ser médico. E foi ser médico na vida. Tempo depois, desejou e transfigurou-se em diplomata, novelista, contista, romancista e finalmente consagrado o maior escritor brasileiro do século vinte.

            É que ele sempre acreditou no destino, pois o misticismo o norteava. “A gente quer passar um rio a nado, e passa;” - ele escreveu –“mas vai na outra banda e num ponto mais embaixo, bem diverso do que em primeiro se pensou.”

            Para criar Grande Sertão viajou a cavalo com os tropeiros pelo sertão na confluência ilimitada de Minas Gerais, Bahia e Goiás. Ciceroneado pelo mítico vaqueiro Manuelzão (no livro Manuelzão e Migulim, vemos ele contar esta história de amizade, onde retrata a aventura  do vaqueiro e parte sua própria façanha de menino), anotou em detalhes o que viu e ouviu nas suas incursões, nas travessias de boiadas. Com este material em mãos, envergando um invencionismo invejável, criou uma obra universal. Criou a figura do jagunço Riobaldo e sua grande paixão secreta Reinaldo, aliás Diadorim, que “não ousava dizer seu nome”, uma epopeia digna das lendas  da guerra do Peloponeso.

            Grande Sertão: veredas – pois no meio daquele bando de jagunços errantes a religião era o mantra constante: “todo o mundo é louco. O senhor, eu, nós, as pessoas todas. Por isso é que se carece principalmente de religião; para desendoidecer, desdoidar. Reza é que sara da loucura...Muita religião seu moço! Eu cá, não perco ocasião de religião.”

            Rosa era um exímio dono da prosa, pois retratava com esmero a oralidade do mestiço, do povo brasileiro, do sertanejo e no bojo desse saber oral as referências incessantes da mitologia grega. Diadorim sempre dizia que não tinha mãe: “ele tinha uma luz, rei da natureza”. E Riobaldo, o chefe, o protagonista, não tinha pai, tinha mãe. E todos os jagunços subordinados pareciam acreditar nisso.

            Ali no sertão, enfim, todas as manifestações da alma humana, o ciúme de Otacília, o desejo de vingança de Diadorim, a inveja de Zé Bebelo, Habão, a frequente exposição do bem e do mal, as indagações sobre a existência de Deus e o diabo e o enigma da morte. Consequência, na travessia deste livro tão longo, um Rio São Francisco, me senti inextricavelmente incansável de tantas histórias cativantes de seres indomáveis, porém verdadeiros. Vi-me no meio de guerras entre bandos de jagunços destemidos, catrumanos. Vi a acusação e defesa de Zé Bebelo como a justiça divina redentora. Vi o pacto duvidoso faustiano de Riobaldo, um Mefistófeles irrealizado. “..o Diabo na rua, no meio do redemunho...?” 

             E eu vi a batalha final de vingança e morte. E assisti a epifania. Diadorim, deusa enigmática, revelada como Joana D’Arc liderando o ataque e a libertação de Orleans. Eu vi o vento parar e fixar o olhar exasperado e distante de Riobaldo sobre o corpo inerte e revelado de Diadorim, como o imperador Adriano diante do corpo estendido de Antínoo às margens do rio Nilo.

            O rio está simbolicamente sempre presente na obra de Guimarães Rosa. Voltei esses dias ao seu livro de contos “Primeiras Estórias” de 1962. Escolhi para reler o fabuloso conto, talvez o mais bem estruturado, “A terceira margem do rio” .  Neste, o pai decide abandonar a família. Encomenda a construção de uma canoa. E inicia a travessia do rio, a vida, a sua existência de homem calado, nem alegre nem triste, “ não mais estúrdio (...) do que os outros”. O narrador, o filho e menino ainda, vai contando toda a história de abandono. Por que o pai partiu naquele rio infindável, enfrentar o sofrimento da vida como uma catarse? O filho implora ao pai, pois sente que o abandono será atroz. Pede pra ir junto. O pai é renitente. Ele quer insistente e tenazmente  trilhar a terceira margem da vida. A mãe é incisiva, forte, lança mão de sua mão matriarcal. Cê vai, ocê fique, você nunca volte!”. Mas o pai há de cumprir ao que se destina. E então ele parte sem remorso.

E a partir daquele dia o desenrolar, o crescimento, as idas e vindas daquela família saudosa na beira da margem do rio...

A prosa rosiana tornou-se universal. Foi traduzido em várias línguas. Como James Joyce do também universal Ulisses (e do hermético Finnegans Wake), Guimarães Rosa criou, inovou a linguagem da prosa regionalista. Como brandiu a Língua do poeta: “se a rosa é uma rosa/então o Rosa é uma prosa, é uma prosa...”

João Guimarães Rosa morreu três dias após tomar posse na Academia Brasileira de Letras. Por ser extremamente supersticioso adiara por quatro anos a cerimônia de entrada definitiva na Academia. Morreu aos 59 anos no dia 19 de novembro de 1967, um domingo, no auge de sua produção literária. Um mistério...??? Talvez Goethe explicasse! 

A morte repentina de Joãozito - da infância - tanto consternou a intelectualidade da época que três dias depois Nelson Rodrigues escreveu uma crônica revelando publicamente a inveja incomodativa que possuía da estilística rosiana. Pirâmides e Biscoitos: - confessa já no final da crônica que “Guimarães Rosa devia chamar-se apenas e para sempre, Guimarães Rosa. O João não devia estar no cartão de visitas. Lembro-me de que no sábado, véspera da morte, fui à casa de Hélio Pellegrino. E tivemos uma conversa obsessiva sobre o Grande Sertão e seu autor. – ‘Falo com o Callado para promover um almoço com o Guimarães Rosa. Você topa? Claro, claro. Coisa curiosa. O Hélio é um admirador nato. Quando não tem quem admirar, sente-se um frustrado e um vencido. Todavia o seu juízo sobre Guimarães Rosa não era um juízo final, mas um ponto de interrogação. Admitia que Grande Sertão  fosse um esmagador monumento estilístico”  (...)  “Minha mulher , Lúcia, só dorme depois que chego. Veio abrir a porta dos fundos. Beijo-a de passagem. Ela já sabe, mas ainda não me diz nada. Bebi o leite gelado e parti para a sala. Foi aí que Lúcia começou – Que coisa horrível aconteceu com o Guimarães Rosa.! Eu desfazia o nó da gravata e parei. – Que foi? E ela: Não sabia? Morreu... Ainda perguntei: Desastre? Disse: enfarte. Fiquei rodando pela sala, eu tivera com a notícia duas reações: primeiro, de pusilanimidade. O enfarte alheio é uma ameaça para qualquer um. A nossa saúde cardíaca é um eterno mistério, um eterno suspense. Depois do medo, veio algo pior e mais vil: uma espécie de SATISFAÇÃO, de euforia. Ninguém me via, só eu me via. Vim para a janela olhar a noite. Cada um de nós tem o seu momento de pulha. Naquele instante me senti um límpido translúcido canalha.”

Tempos depois, Nelson Rodrigues explicou a inveja de Guimarães Rosa: “Vivo, ele nos agredia e humilhava com sua monumental presença literária.”

No entanto, no jogo inconfundível de contrapesos da vida, naquele mesmo terceiro dia após a morte do amigo, o poeta Carlos Drummond de Andrade escreveu em sua coluna no Correio da Manhã o poema emocionante “Um Chamado João: João era fabulista? Fabuloso? Fábula?/ João era tudo? Tudo escondido, florindo como flor é flor, mesmo não sendo semeada. E ficamos sem saber o que era João e se João existiu de se pegar. (...) Era mesmo de prosa ou poesia?” 

O certo é que, como na tragédia grega, Guimarães tentou adiar, furtar-se ao seu destino, porém um raio ligeiro, límpido e fulminante o atingiu naquela noite de primavera do Rio...Rio de Janeiro.

            

             

domingo, 30 de agosto de 2020

SIMONE DE BEAUVOIR, uma vida

 

              LEITURA DA SEMANA#1 SIMONE DE BEAUVOIR – UM VIDA  ​​
       
               Ainda no início da adolescência ela já sabia o que queria ser: filósofa, escritora. Todos os dias, quando voltava do colégio, conversava com a amiga Zaza falando de seus sonhos, seus anseios, suas leituras. Com fervor, lia os filósofos de jeito ultrarrápido e compulsivamente Hegel, Sören Kierkegaard, Husserl e principalmente o favorito Henry Bergson. Tinha a consciência de seu poder de reflexão, autossuficiência etc, pois aos sete anos já havia escrito uma história de cem páginas, Les malheurs de Marguerite – As desgraças de Marguerite -. ​​ Nascida numa família de burgueses católicos, conservadora e da direita francesa que aceitava a República, porém tinha pendência à aristocracia, à monarquia. Destarte, logo cedo para surpresa dos pais, Simone de Beauvoir se rebelou contra isso. Em toda sua juventude rechaçou o desejo da mãe em proporcionar-lhe um casamento tradicional e torná-la uma mulher católica fervorosa, mãe, dona de casa. Abominou a ideia em receber o dote e, por fim, ser obediente incondicional ao marido, respeitando a condição da mulher francesa da época. Simone queria ser diferente. ​​ Em O segundo Sexo, a obra máxima, alcança um escopo muito além da célebre frase “ninguém nasce mulher: torna-se mulher” e aprofunda “concretamente na busca incansável pela independência da mulher”. Portanto, ela diz logo na introdução que “não se trata aqui de enunciar verdades eternas, mas de descrever a fundo universalmente sobre o qual se desenvolve toda a existência feminina singular.” ​​ Esta recente biografia de Kate Kirkpatrick – bem verdade que toneladas de páginas já foram escritas sobre a vida de Beauvoir – envereda mais pelo caminho de seus amores “contingentes”, revelando fatos inusitados e desconhecidos do grande público relativos ao pacto que ela fizera com Sartre ainda em plena juventude. ​​ O pacto que eles consagraram – Sartre com vinte e três anos e Simone com apenas dezenove anos de idade – logo depois de sair do cinema numa noite agradável (assistiram ao “Tempestade sobre a Ásia”, filme soviético dirigido por Vsevolod Pudovski), no final de uma caminhada pelos Champs-Élysèes. Chegaram até ao Carrossel do Louvre e ali sentados , num banco de pedra, havendo como testemunha uma velha que alimentava um gato miando, faminto, selaram o contrato de dois anos: “não somente nenhum de nós nunca mentiria ao outro, como também nada lhe esconderia”. Sartre explicou mais efusiva e detalhadamente que “entre nós, trata-se de um amor “necessário”, convém que conheçamos também amores “contingentes”. ​​ Tempos depois, o contrato seria renovado para a eternidade. ​​ Simone de Beauvoir se converteu em celebridade no mundo inteiro, assim como Jean-Paul Sartre. Eles viveram juntos plenamente por mais de meio século. Sartre se envolveu com dezenas de amores “contingentes”: jovens atrizes, escritoras, mulheres que se transformaram em celebridades no mundo das artes. E Simone da mesma maneira, se apaixonou por mulheres e homens que chegaram também ao estrelato mais tarde. O amor mais “contingente” dela, dizem que foi o escritor americano Nelson Algren, embora Claude Lanzmann tenha despertado um amor fulgurante no início do relacionamento. Sem dúvida, no entanto, o único amor “essencial” Jean-Paul Sartre ultrapassou a todos os outros “contingentes”. Por isso, permanecem juntos para a eternidade no Cemitério de Montparnasse, como num drama shakespeariano. ​​ Esta biografia também revela a filósofa combativa, tenaz antirracista, defensora implacável da causa feminista, dos oprimidos, humilhados e ofendidos. E mostra uma escritora irredutível no enfrentamento ao establishment, tendo em mãos apenas a sua caneta - e que caneta prolífera!! Ela dizia que “a melhor maneira de explodir um saco de ar quente não é acariciando-o, e sim cravando as unhas nele”. Apoiou com veemência o anticolonialismo francês e quase foi presa pelo governo do general De Gaulle (1890-1970). ​​ Beauvoir viveu uma vida fascinante. Claro, houve momentos de sofrimentos, de dúvidas, angústias, de reflexões sobre o seu ateísmo. Mas ela era existencialista, humanista e viveu ao lado “do amigo incomparável de meu pensamento”, contrariando tudo aquilo que sua mãe planejara. ​​ Em verdade, ela foi a mulher que fincou as bases do feminismo do século XX. E inspirou um sem-número de futuras defensoras do Movimento de Libertação da Mulher. ​​ Eis aqui uma extraordinária biografia para quem quer saber mais sobre o ilustre casal intelectual do século passado. Em síntese, tenho a sensação, apesar de críticas em contrário, de que “se há algo a aprender com a vida de Simone de Beauvoir é isso: ninguém se torna o que é sozinho !”

segunda-feira, 10 de agosto de 2020

A Montanha Mágica


                         


                            

                                                        A MONTANHA MÁGICA

 

Mil e uma noites não foram necessárias para desvendar o mistério da montanha de mil páginas deste consagrado romance mundialmente. No entanto, vários dias concomitantes ocuparam-me, dias mágicos, encantados e felizes resgatados de dentro da angústia da pandemia. Lembrei-me das noites silenciosas do rei Shariar diante de Sherazade, a cada noite mais enfeitiçado e esquecendo de seus propósitosprimários, de seu mundo excruciante e desejoso de vingança. Me lembrei até de Michel Foucault (1926-1984) analisando a narrativa, a oralidade da cativante contadora de histórias: “Penso que em As mil e uma noites”, falava-se, narrava-se até o amanhecer para afastar a morte, para adiar o prazo deste desenlace que deveria fechar a boca da narradora.” Mas, neste monumental romance de formação, que me dei a ousadia de resenhar,Thomas Mann (1875-1955) não escreve apenas sobre a morte senão sobre a vida, sobre o tempo, política, filosofia, amor e ódio...

Mann ganhou o prêmio Nobel de literatura pelo aclamado “Os Buddenbrooks”, embora o mais popular seja mesmo “Morte em Veneza”. O escritor, vindo de família alemã rica, abastada, burguesa retrata com frequência essa condição em seus inúmeros livros. Era filho de brasileira, Julia da Silva Bruhns (1851-1923) filha de alemão e mãe portuguesa latifundiários na região de Paraty, época de D. Pedro II. Referindo-se a isso, uma vez ele disse que tinha orgulho de ter o sangue brasileiro correndo em suas veias: “...creio que à origem latina e brasileira devo certa clareza de estilo. E, para dizer aos críticos, o temperamento pouco germânico. Li apaixonadamente os escritores alemães, clássicos russos, franceses e ingleses, porém estou certo que a influência mais decisiva sobre a minha obra resulta do sangue brasileiro que herdei de minha mãe.”

Em “A Montanha Mágica”, a opus Magnum, observa-se a exposição da alegria na cena do carnaval, as reuniões festivas e debochadas, um sem-número de confraternizações regadas à comida pantagruélica.  Destarte, era uma vida de felicidade e opulência. Certamente ele retratava ali a sua própria vida, assim como da mesma forma nos outros romances.  Embora também mencionasse os momentos sombrios, difíceis, reflexo dos suicídios de suas duas filhas – Julia e Carla -, a fuga da Europa, assolada pelo nazifascismo, para os Estados Unidos. Junto a esses fatos a lida com o homossexualismo em anos soturnos na Europa e no mundo. No exílio americano converteu-se em ferozcombatente ao führer Adolf Hitler. Dizia sempre que “onde eu estiver a Alemanha sempre estará”. Voltou tempos depois, já naturalizado americano, para Zurique onde está sepultado.

A Montanha Mágica” é uma narrativa sobre o tempo. Em relação a isso, antes de iniciar a longa história Thomas Mann avisa que “queremos narrar a vida de Hans Castorp – não por ele –“e que “os fatos aqui referidos se passaram há muitos anos já. Estão, por assim dizer recobertos pela pátina do tempo, e em absoluto não podem ser narrados senão na forma de um passado remoto.”

Então Hans Castorp, o protagonista, jovem engenheiro naval recém-formado de Hamburgo, rico e herdeiro de vultuosa fortuna, sempre protelando o início da profissão, resolve visitar o primo Joachim lá no alto das montanhas dos Alpes suíços num sanatório para tuberculosos – só para a nata da burguesia europeia e mundial. Desde a longa viagem de trem subindo as montanhas até o único primeiro dia no Sanatório Internacional Berghof, onde o primo estava em tratamento há algum tempo, a narrativa se arrasta em longas duzentas páginas. O tempo é elástico ali. Ninguém tem pressa. Todos sabem das chances de sobrevivência. E Hans Castorp chega para ficar apenas três semanas como visitante. À primeira vista ele não gostou.

- Não! Para falar com franqueza, não acho a paisagem assim tão formidável !

Nesse mesmo primeiro dia, ao ser apresentado ao dr. Krokowski, disse que passaria ali apenas três semanas em visita ao primo tuberculoso e que gozava de perfeita saúde.

- Será? – perguntou o dr. Krokowski, avançando a cabeça obliquamente, como para caçoar, enquanto o seu sorriso se acentuava – Nesse caso o senhor é um fenômeno digno de ser estudado. Eu, pelo menos, ainda não encontrei um homem de perfeita saúde...

Pouco tempo depois Hans Castorp conhece Settembrini, Lodovico Settembrini, um escritor humanista italiano de veia carbonária que já se encontrava ali também desde muito tempo. E o niilista italiano vai transfigurar-se num grande amigo e preceptor de nosso herói, pois possuía uma vasta cultura, apesar de sua incontrolável fanfarronice.

Aos poucos Castorp vai conhecendo toda aquela gente rica e modos burgueses ao extremo, gente toda em tratamento que se encontrava cinco vezes ao dia para refeições em sete grandes mesas separadas e ordenadas. Mesas de ricaços, topo exclusivo da pirâmide, mesas de, vamos dizer, menos ricos, as mesas dos aristocratas russo, dos “russos ordinários”... e assim se lavava a roupa suja da Europa no meio de pratos e mais pratos, digno de A Comilança de Marco Ferreri. Era o local onde se discutia sobre tudo. As mesas redondas permaneciam sempre completas, pois as mortes eram diárias, mas outros pensionistas chegavam imediatamente para ocupar os lugares vazios.

Chega o momento em que o nosso rico engenheiro conhece Mme. Chauchat e se apaixona. Clavdia Chauchat, uma suposta russa nobre que falava francês, despertou um sentimento arrebatador no “visitante e espectador desinteressado.” Ao passar pela primeira vez por Hans Castorp “ela esboçou um leve sorriso ao ver aqueles olhos e, segurando com a mão a trança que lhe cercava a cabeça levemente avançada, desceu à sua frente pela escada a passo elástico e silencioso.”

Dias depois, eles travaram um longo diálogo em francês – por quase vinte páginas do romance e sem tradução da editora Nova Fronteira sugerindo um enlace enredado no destrinchado empréstimo de uma lapiseira de prata!

Ao longo do romance vão surgindo diferentes personagens que vão e vêm. Settembrini encontra em Naphta – um judeu convertido ao cristianismo, à ordem dos Jesuítas – o seu oponente, debatedor feroz, intolerante, sectário. Porque Settembrini acreditava na concretude do homem, na ciência, e na negação da existência de Deus. E ao longo dos meses os ânimos se arrefeceram pouco a pouco redundando no....  evito o “spoiler”, caro leitor, para não estragar a sua futura leitura!

Pois bem, o romance é muito extenso, é fato, mas de uma beleza extraordinária. Abre todos os leques da existência humana através dos infindáveis diálogos. Comenta-se sobre a morte extensamente vis a vis o ambiente. Recorre-se sobre a religião à exaustão, sobre a mitologia e os tempos imemoriais. Fala-se sobre livros e o “efeito purificante e santificador da literatura, a destruição das paixões pelo conhecimento e pela palavra.”

Na realidade, mais uma vez, o tema desse vasto romance é o tempo. Pois que o personagem central Hans Castorp, que pretendia apenas visitar o primo nas montanhas de Davos, depois de diagnosticado com a tísica ia ficando semanas, meses, anos... “O tempo é o elemento da narrativa, assim como é o elemento da vida”, diz o narrador.

Dizem que o melhor livro de Thomas Mann, a verdadeira opus Magnum, seria o “Dr. Fausto”. Talvez seja mesmo. Porém ele próprio considerava “A Montanha Mágica” o livro que mais  mais apreciava.

Me arrependo com certo remorso de ter tantas vezes ao longo dos anos olhado sempre de esguelha para este livro lá no alto da minha biblioteca sem nunca o ter resgatado de sua inércia. Talvez por algum temor obscuro de sua grandeza. Ou talvez com medo do tempo que ele me auferiria. Mas agora faz parte do ganho, do acúmulo de meu conhecimento. É o que a literatura nos recompensa. E nos direciona, segundo Thomas Mann a “uma longa jornada rumo a si próprio.” 

segunda-feira, 25 de novembro de 2019

Notas do Subsolo - Dostoiévski - Em A Idade da Razão Jean Paul Sartre, o maior expoente do Existencialismo, inicia o romance com o sofrimento da mendicância, o sofrimento da alma, a injustiça social e a confabulação da felicidade. Tudo ao mesmo tempo, tudo ali nas primeiras páginas... Quase cem anos antes Dostoiévski escrevia Notas do Subsolo, no meio de uma crise física e psicológica monumental. Escrevia num quarto pobre, sem calefação, a mulher numa cama ao lado morrendo de tuberculose, a neve caindo e o frio implacável, a penúria e a falta de dinheiro para suprir até mesmo as necessidades básicas. Um inverno em Moscou, frio e hostil como o diabo! Nessas condições, Dostoiévski criou uma obra de arte comparável a Crime e Castigo, a Os Irmãos Karámazov e Memórias da Casa dos Mortos, buscando no seu interior, no seu subsolo o alimento para expressar o sofrimento, o desejo de liberdade, a integralidade da felicidade. Uma obra que é considerada a precursora do Existencialismo de Kierkegaard, Sartre, Camus, Simone de Beauvoir e tantos outros... Veja, como Camus em O Estrangeiro, o texto choca o leitor logo nas primeiras linhas: "Eu sou um homem doente...Sou um homem malvado. Sou um homem desagradável. Creio que tenho uma doença grave do fígado. Aliás, não compreendo absolutamente nada da minha moléstia e não sei mesmo exatamente onde está o mal." A partir de então, o narrador mergulha no mais profundo recôndito da alma humana, em busca do livre-arbítrio, da existência antes da essência, da liberdade plena. Resumindo: leia Notas do Subsolo e uma fenda será aberta no seu interior, no seu subterrâneo!!

sexta-feira, 8 de novembro de 2019

Houve uma época em que escolhia os livros na livraria pelos títulos. Os títulos me atraíam, confesso sem pudor: A Montanha Mágica, Conversas na Catedral, A Obra em Negro... Tempos depois, a suntuosidade, a beleza, o esmero artístico da capa ganharam lugar e assim passei a comprá-los pela capa. Algumas ostentando verdadeiras obras de arte! Mais tarde, melhor conhecedor de literatura, a escolha revelou-se mais selecionada e, consequentemente, determinada pelo conteúdo e conhecimento prévio do tema de cada livro. Mas eis que agora estou diante de minha caótica, embora exígua, biblioteca e buscando mais um Dostoiévski (este ano estou no momento sublime dos russos) e sou atraído pela sugestiva e bela capa de O Eterno Marido. Embora tenha visto ali contíguo o "Notas do Subsolo" da Martin Claret, uma bela capa sem dúvida, não foi uma Escolha de Sofia. O Eterno Marido foi escrito em um curtíssimo espaço de tempo. Menos de três meses. Dostoiévski estava em apuros financeiros, rodeado de credores e uma vida de penúria. E escreveu a toque de caixa, uma novela curta porém extraordinária, espelhando o monstro literário que ele carregava dentro de si. Embora ele próprio não expressasse grande amor, o livro foi aclamado no momento do lançamento, em folhetins, pela crítica da época. O tema principal é o adultério feminino. Ou seja, de grande atração para os leitores da época. Simplesmente porque o masculino em contrapartida era aceito normalmente tanto pela aristocracia quanto pela plebe. Fiódor Dostoiévski não expressa seu ponto de vista aqui no texto. Ele fica de fora. Pois sabemos que ele foi um seguidor e conhecedor profundo da Bíblia. E que foi o único livro que leu durante os longos anos de prisão na Sibéria. Por isso, em toda a sua obra posterior o escritor espalhou Jesus Cristo, a crença em Deus e o catolicismo por todo o seu trabalho. Mas vamos falar do Eterno Marido: Veltchaninov é um nobre solteirão que vive à caça das mulheres insatisfeitas no casamento. Via de regra é o amante ideal para essas infelizes. E ele sabe disso e se vangloria. Sobre uma delas ele diz: "É uma dessas mulheres que nasceram para ser infiéis ao marido... dessas que não caem, antes do casamento. É a lei de seu temperamento que isto aconteça depois. O marido é o primeiro amante..." Anos depois de suas aventuras amorosas, Veltchaninov recebe a estranha visita no meio da noite de seu amigo de infância Pavel Pavovlitch anunciando a morte de sua esposa Natália Vassilievna, uma de suas amantes. A partir deste encontro inusitado o enredo toma fôlego. Explode então a maestria e gigantismo do escritor ao inserir densidade e psicologismo nos diálogos travados entre o traído, humilhado e ofendido e o insolente Don Juan. E no meio do confronto a presença da filha da morta, a dúvida da paternidade, a angústia, o ódio, o desejo de vingança brotando de dentro dos dois protagonistas. (a lembrança de Dom Casmurro?) Como diz Veltchaninov: "Tudo isso é ridículo; somos, ambos, indivíduos viciosos, baixos, fingidos.." Depois de fechar a última página me ponho a pensar que talvez o ser humano não tenha mudado nada nesses anos todos...

terça-feira, 5 de novembro de 2019

     
       
     
Poderia ser reconhecido como um dos grandes escritores russos. Mas Iuri Oliécha, foi impositivamente expurgado, banido e esquecido pela "inteligentzia", pelo meio literário russos, principalmente pela sua opção ao individualismo e crítica contumaz ao coletivismo. Nesta curta novela, impregnada de fascinantes metáforas, o personagem central Kavaliérov, alter ego do escritor, um intelectual em desgraça, cheio de descrença e amargura ao mundo que o rodeia, descreve-o com desdém . E sobrecarregado de inveja deste mesmo mundo que ele tanto despreza e muitas vezes observa-o com indiferença, Kavaliérov esforça-se em " romper com tudo o que existira antes...(....), e aquela vida repelente, monstruosa, que não era dele, uma vida alheia, imposta, ficaria para trás... " Com tradução magistral e pósfácio de Boris Schnaiderman, bom que se diga, é uma novela leve, ágil, com enorme fluidez proporcionada pelo tradutor. Mas o que encanta aqui é a estilística literária, que provavelmente deixara atônitos os literatas do início do século XX. Também pudera!! Com metáforas como "O coração pula como um ovo em água fervente", é impossível não se inebriar por esta história. É só deitar no divã e abrir a primeira página. Encontrará as reminiscências de um homem que concorda com seu amigo Ivan: "Penso que a indiferença é a condição melhor da mente humana."

sábado, 23 de março de 2019

COMO CURAR UM FANÁTICO





               COMO CURAR UM FANÁTICO


              
               O eterno conflito entre judeus e árabes palestinos por uma partilha de terras justa e permanente e consequentemente a esperança de um dia ver reinar a paz entre esses povos é o principal tema deste ensaio do escritor israelense Amós Oz. Volto à escrita desse israelense, nascido em Jerusalém, porque ao ler De Amor e Trevas, um romance, descobri um autor de textos objetivos, densos e ao mesmo tempo povoados de humor. Um humor que serena a tragédia palestina e judia. Um humor que enfraquece a dureza do fanatismo, do radicalismo, da ortodoxia.
              Em verdade o assunto central deste ensaio é abordar o fanático, este ser tão reprodutivo no mundo contemporâneo. Em apenas cem páginas, Oz disseca o perfil enigmático e conflituoso do fanatismo religioso. E, por falar em humor, logo nas primeiras páginas sugere que "Fanáticos não têm humor, e raramente são curiosos. Porque o humor corrói as bases do fanatismo e a curiosidade agride o fanatismo ao trazer à baila o risco do questionamento para não ser revelado o seu próprio erro."   E eu penso que Amós conhece bem o tema, pois viveu dentro de um caldeirão de fanáticos cegos em democracia, em liberdade, em respeito à diversidade. Ele pondera que Jesus Cristo disse "Perdoa-lhes: eles não sabem o que fazem". Mas ressalta que o fanático quer sempre infligir dor. E eles sabem o que fazem.  E explicando melhor, acentua que o "fanatismo e fundamentalismo muitas vezes têm uma resposta com uma só sentença para todo o sofrimento humano. O fanático acredita que se alguma coisa for ruim, ela deve ser extinta....O fanatismo é muito antigo. É muito mais velho que o islã, o cristianismo e o judaísmo".  E confirmando o que vemos com frequência, diz que "o fanatismo muitas vezes origina-se na vontade imperiosa de modificar os outros pelo próprio bem deles".  E que "muitas vezes, essas coisas começam em família, o fanatismo começa em casa...um impulso de viver sua vida calcada na vida de outra pessoa".
              Em certo momento, principalmente já no final, antes de uma entrevista grandiosa concedida no final de 2003, volta ao conflito entre palestinos e israelenses. Ele desejaria viver mais - morreu em 2018 - para ver consagrada a tão desejada paz. E ainda assim, debaixo de tantos conflitos, de tanto fanatismo, vislumbra um fio de esperança. Enfatiza que toda a sua obra direcionou para o "compromisso" entre os irmãos. Mesmo que muitos fanáticos tentaram desviar e "transformar o que eu descrevi como uma 'disputa imobiliária' numa Guerra Santa.
                É um pequeno texto, penso eu, que tem a condição necessária para aqueles que querem entender e acreditar na solidariedade social, na democracia e no livre arbítrio.