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domingo, 11 de março de 2012

O SILÊNCIO NA MARÉ VAZANTE



O SILÊNCIO NA MARÉ VAZANTE



                                                                                
                                                              "Teu silêncio é de estrela, tão remoto e singelo..."
                                                                                                                   Neruda



                                  Eu sou um ser urbano  darwineanamente contente. Mas confesso que sinto falta do silêncio. Este caos urbano em que vivemos atualmente, e que nos acompanha a todo instante, é estarrecedor. As cidades crescem, inflam-se, expandem-se desordenadamente e aumentam os decibéis sem controle. E assim vamos absorvendo como num passe de mágica todas essas mazelas, sem muito reclamar.   
                                  O barulho está em toda parte na sociedade moderna. No cinema, onde supunha-se que iríamos para assistir a um filme, o que vemos é um pipocar de telefones celulares e pessoas mal-educadas a incomodar o vizinho sem nenhum escrúpulo. Ao restaurante vamos invariavelmente não para restaurar o corpo, mas para fofocar aos berros. E muitas vezes transformando em local de resolução de conflitos profundos, também aos berros.
                                  O barulho das cidades é fato consumado e talvez irreversível. O problema reside na gravidade. A cada dia incorpora-se um novo tipo de barulho. Os clássicos barulhos dos automóveis, das britadeiras, das construções, das indústrias, dos aviões já não incomodam mais.(Claro, seguindo Darwin, a Revolução Industrial deslocou o homem do campo e o adaptou ao conglomerado das cidades.) Quem frequenta academias de ginásticas sabe o quão é nocivo o barulho gerado dentro dela. Som excessivamente alto, inúmeras esteiras zunindo o tempo todo, vários aparelhos funcionando ao mesmo tempo!! Ou seja, novos ambientes barulhentos vão surgindo, a cada dia. E além disso o barulho dos Ipods da vida. Mas este é de domínio individual. Creio que todo ser humano seja livre conscientemente para se autodestruir.  O problema é que percebe-se ultimamente o vazamento deste som de tão alto que se usa. E somos obrigados a ouvir certos tipos de músicas extremamente indesejáveis.
                                 Bem, eu costumo treinar quase todos os dias correndo pelas ruas da cidade. E sinto falta do silêncio. Não ouço o barulho das minhas passadas. Não ouço o barulho da minha respiração quase ofegante. Não ouço o barulho longínquo das batidas do meu coração. E nem mesmo do vento resvalando no meu corpo. Todos vencidos pelo murmúrio infatigável da cidade.
                                   Fugindo disto, em uns poucos dias de folga durante o carnaval ( uma fonte geradora de barulho tão enorme, que é melhor nem comentar) passado, tive o inenarrável prazer, quase um delírio, em correr em total silêncio. Correr comigo mesmo e os murmúrios da natureza.
                                    Logo no primeiro dia bem cedo, saindo do bangalô em que estava hospedado, fui observar a maré. A praia estava totalmente deserta. Não conheço bem a tabela das marés, nem sei calculá-la. Instintivamente, julguei que poderia iniciar a minha corrida. E assim, primeiro com passos lentos e cadenciados, fui correndo contra o vento. Um vento leve e refrescante. Sem esforço algum, aumentava a passada. Ouvia o barulho dos meus pés entrando na água fina do mar e penetrando suavemente na areia, criando marolas na maré vazante que apagavam sistematicamente atrás de mim. Ouvia o barulho dos meus pulmões se inflando e soltando gentilmente o ar, num automatismo magnífico. Ouvia as batidas do meu coração, que produziam um eco quase silencioso e inebriante. Ouvia e sentia as conchas do mar tentando penetrar no meu tênis minimalista sem dor, como uma massagem compulsória.  E assim fui correndo, correndo... correndo sem fadiga até atingir o estágio alpha, quando atingimos o ápice do prazer na corrida. E também quando o córtex cerebral, num reconhecimento febril, inunda nosso corpo de hormônios, eliminando as dores, o desconforto, levando o corpo a um estado de leveza.
                                      Depois de muito tempo, correndo em direção a lugares incalculáveis, atravessando riachos que desaguavam no mar, mangues intransponíveis a depender da maré,  fiz meia volta de chofre e de instinto. Já bem perto do hotel, e agora com uma chuvinha fina que caía e o vento empurrando-me delicadamente de volta, pensei com saudosismo no silêncio. Este silêncio que acostumamos a não tê-lo cotidianamente mais, mas que sem dúvidas é uma grande lacuna no nosso interior. 

                                       O silêncio devia ser o nosso companheiro de sempre. Devíamos tratá-lo bem. E até adorá-lo mesmo, pois introduzido no nosso mundo, significa muito. Muito distante de nossa era Contemporânea, no Renascimento, Da Vinci disse então que "as mais lindas  palavras de amor são ditas num silêncio do olhar". Nada a comentar. Apenas o silêncio.





domingo, 4 de março de 2012

A PRIMEIRA MARATONA DE PARIS E A IMAGINAÇÃO DO SR. HURST

        

A PRIMEIRA MARATONA DE PARIS




                                Nos arredores da port Maillot, entrada charmosa de Paris,  uma multidão de ciclistas e espectadores aguardavam o sinal de largada de Monsieur Giffard, representante do Le Petit Journal e diretor da Primeira Maratona de Paris. Era um domingo de céu azul e quente, 18 de Julho de 1896.
                                 O pequeno pelotão de apenas duzentos maratonistas conversavam animadamente. Bem junto à linha de largada, dois irmãos ingleses amarravam as sapatilhas de couro. Leonard Hurst e Joe atravessaram o Canal da Mancha com grande expectativa de conquistar os parisienses.
                                   E os parisienses pareciam felizes. Era a Paris fin-de-siècle, às vesperas da Exposição Universal. O Barão de Haussmann tinha transformado Paris a pedido de Napoleão. Criou-se os grandes boulevares, as grandes avenidas. A Paris favelizada, de ruelas imundas, escuras e medievais agora pulsava de alegria.
                                     E foi neste ambiente de êxtase que M. Giffard autorizou a largada às 6:00 horas da manhã daquele domingo. Imediatamente os dois irmãos ingleses tomaram a dianteira em direção a Versailles. Seguido bem de perto e descalço o marceneiro Mège, excelente corredor de longa distância de apenas 21 anos. Incentivado a todo instante pelos ciclistas compatriotas, ele se esforçava herculeamente para não perder o contato com os dois ingleses.
                                     Já entrando na estrada real e afastando-se dos arredores de Paris, Mère, após beber a primeira taça de champagne e um pouco de suco de laranja no km 6, aproximou-se ameaçadoramente de Joe e Len Hurst. E, como na Guerra dos Cem Anos, a luta foi demorada, disputada metro a metro.
                                     Ao passar por St. Germain finalmente Joe sucumbe a Mère e Bagré, seguido de perto por Chauvelot. Então, a dobradinha dos irmãos ingleses tinha sido finalizada. Restava agora a liderança incontestável do pedreiro Hurst.
                                      Ao chegar a Croix de Noailles, acompanhado de centenas de ciclistas, Leonard Hurst bebe mais um pouco de champagne. Sem nenhuma alimentação durante todo o percurso, com o corpo tomado de poeira, os pés cheios de bolhas e a sapatilha de couro em frangalhos, ele atravessa a linha de chegada em Conflans 2h31'30" depois.
                                       Uma pequena multidão de 2.000 espectadores o aplaude. O seu técnico Boone o abraça efusivamente. Os ciclistas fazem um círculo em volta dele e gritam "le roi de Paris !!!".
                                       Assim termina a minha história da primeira maratona de Paris, assim como do herói britânico Leonard Hurst, que continuou ainda vencendo maratonas na virada do século XIX.