O SILÊNCIO NA MARÉ VAZANTE
"Teu silêncio é de estrela, tão remoto e singelo..."
Neruda
Eu sou um ser urbano darwineanamente contente. Mas confesso que sinto falta do silêncio. Este caos urbano em que vivemos atualmente, e que nos acompanha a todo instante, é estarrecedor. As cidades crescem, inflam-se, expandem-se desordenadamente e aumentam os decibéis sem controle. E assim vamos absorvendo como num passe de mágica todas essas mazelas, sem muito reclamar.
O barulho está em toda parte na sociedade moderna. No cinema, onde supunha-se que iríamos para assistir a um filme, o que vemos é um pipocar de telefones celulares e pessoas mal-educadas a incomodar o vizinho sem nenhum escrúpulo. Ao restaurante vamos invariavelmente não para restaurar o corpo, mas para fofocar aos berros. E muitas vezes transformando em local de resolução de conflitos profundos, também aos berros.
O barulho das cidades é fato consumado e talvez irreversível. O problema reside na gravidade. A cada dia incorpora-se um novo tipo de barulho. Os clássicos barulhos dos automóveis, das britadeiras, das construções, das indústrias, dos aviões já não incomodam mais.(Claro, seguindo Darwin, a Revolução Industrial deslocou o homem do campo e o adaptou ao conglomerado das cidades.) Quem frequenta academias de ginásticas sabe o quão é nocivo o barulho gerado dentro dela. Som excessivamente alto, inúmeras esteiras zunindo o tempo todo, vários aparelhos funcionando ao mesmo tempo!! Ou seja, novos ambientes barulhentos vão surgindo, a cada dia. E além disso o barulho dos Ipods da vida. Mas este é de domínio individual. Creio que todo ser humano seja livre conscientemente para se autodestruir. O problema é que percebe-se ultimamente o vazamento deste som de tão alto que se usa. E somos obrigados a ouvir certos tipos de músicas extremamente indesejáveis.
Bem, eu costumo treinar quase todos os dias correndo pelas ruas da cidade. E sinto falta do silêncio. Não ouço o barulho das minhas passadas. Não ouço o barulho da minha respiração quase ofegante. Não ouço o barulho longínquo das batidas do meu coração. E nem mesmo do vento resvalando no meu corpo. Todos vencidos pelo murmúrio infatigável da cidade.
Fugindo disto, em uns poucos dias de folga durante o carnaval ( uma fonte geradora de barulho tão enorme, que é melhor nem comentar) passado, tive o inenarrável prazer, quase um delírio, em correr em total silêncio. Correr comigo mesmo e os murmúrios da natureza.
Logo no primeiro dia bem cedo, saindo do bangalô em que estava hospedado, fui observar a maré. A praia estava totalmente deserta. Não conheço bem a tabela das marés, nem sei calculá-la. Instintivamente, julguei que poderia iniciar a minha corrida. E assim, primeiro com passos lentos e cadenciados, fui correndo contra o vento. Um vento leve e refrescante. Sem esforço algum, aumentava a passada. Ouvia o barulho dos meus pés entrando na água fina do mar e penetrando suavemente na areia, criando marolas na maré vazante que apagavam sistematicamente atrás de mim. Ouvia o barulho dos meus pulmões se inflando e soltando gentilmente o ar, num automatismo magnífico. Ouvia as batidas do meu coração, que produziam um eco quase silencioso e inebriante. Ouvia e sentia as conchas do mar tentando penetrar no meu tênis minimalista sem dor, como uma massagem compulsória. E assim fui correndo, correndo... correndo sem fadiga até atingir o estágio alpha, quando atingimos o ápice do prazer na corrida. E também quando o córtex cerebral, num reconhecimento febril, inunda nosso corpo de hormônios, eliminando as dores, o desconforto, levando o corpo a um estado de leveza.
Depois de muito tempo, correndo em direção a lugares incalculáveis, atravessando riachos que desaguavam no mar, mangues intransponíveis a depender da maré, fiz meia volta de chofre e de instinto. Já bem perto do hotel, e agora com uma chuvinha fina que caía e o vento empurrando-me delicadamente de volta, pensei com saudosismo no silêncio. Este silêncio que acostumamos a não tê-lo cotidianamente mais, mas que sem dúvidas é uma grande lacuna no nosso interior.
O silêncio devia ser o nosso companheiro de sempre. Devíamos tratá-lo bem. E até adorá-lo mesmo, pois introduzido no nosso mundo, significa muito. Muito distante de nossa era Contemporânea, no Renascimento, Da Vinci disse então que "as mais lindas palavras de amor são ditas num silêncio do olhar". Nada a comentar. Apenas o silêncio.