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segunda-feira, 18 de fevereiro de 2019

O JUDAS DE OZ

            

                        O JUDAS DE OZ


                     Lançando mão de uma história comovente, a relação de um estudante desiludido, cuja família entrou em decadência, e um velho conturbado, genioso, ranzinza,  mas misteriosamente otimista, esta obra mescla o velho e o novo, consternação e piedade de um povo em eterno conflito.
                Na verdade, Amós Oz, considerado o maior romancista israelense contemporâneo e que morreu há pouco menos de um mês, deseja relatar o desespero entre o “povo árabe e seus irmãos israelenses.” através de diálogos consistentes entre o jovem Shmuel, desistente da Univerisdade Hebraica, onde desenvolvia uma tese de pós-graduação, “Jesus na visão dos Judeus”, e o velho que expõe as suas reminiscências de uma vida longa para confirmar a necessidade de uma paz negociada entre os povos ancestrais e irmãos.
               Ao mesmo tempo o romance resgata a vida de Judas Iscariotes - provavelmente Oz aqui baseou-se nos escritos apócrifos - , desmitificando-o como o tradicional traidor. Judas é então tratado como um discípulo judeu bom, pacificador, inteligente e que exercia grande influência sobre Jesus. E Judas Iscariotes, que fora enviado pelos sacerdotes para revelar-lhes o verdadeiro poder do enviado de Deus, que pregava nos mais recônditos vilarejos da Galileia, acabou absorvido pela pregação e milagres de Cristo, tornando-se um dos seus seguidores mais fiéis. É isto que nos conta Amós Oz neste romance extraordinário.
                  O romance a todo instante, numa constante metáfora, evoca a necessidade da paz entre os homens. Afinal, Jesus trouxe a boa-nova, o perdão, o amor, a paz. Sem a evocação do Apocalipse como punição à diversidade.  Rompeu com a tradição sanguinária do velho, do antigo - numa referência moderna, expulsou a violência inimaginável da distopia de Gilead !! - E não a vingança, o ódio, o desejo de morte e derramamento de sangue entre irmãos. Porque mesmo diante da figueira, mesmo ao enfrentar os vendilhões do Templo, a sua mensagem era de paz, de amor e desejo de uma sociedade em harmonia e fraternidade. Diante de Jesus, de sua pregação pelos vales da Terra Santa, certamente aqueles que pregam a discórdia, o enfrentamento e a vingança receberia a redenção.
               
                     É a temática desta obra-prima !
                             
                  Sem esperança, o jovem Shmuel faz suas caminhadas noturnas pelas ruas de Jerusalém, como um errante em busca do destino final. Em suas elucubrações busca um sentido para si aqui na Terra. Reflete sobre a traição que o pai sofrera do sócio  na Empresa, levando a derrocada financeira de toda a família. Mas parece que, como numa epifania, assim que o romance caminha para o final, alguma luz de esperança surge em seus pensamentos: a paz, o amor entre os seres humanos aqui na Terra.
                E numa noite destas, ele para diante de uma figueira e colhe "um ou dois frutos precocemente amadurecidos....porque nenhuma figueira frutifica antes da primavera".  Na rua seguinte, caótica e "cheia de destroços, numa janela do segundo andar apareceu uma mulher jovem e bonita, num colorido vestido de verão." Uma mulher agradável e que, provavelmente, o faz lembrar da tristeza e decepção que sentiu naquele dia não tão distante em que Iardena, a jovem namorada o abandonou para sempre.
                Naquela rua escura e deserta, mesmo sem saber aonde ir, a esperança de dias melhores parece ter brotado dentro do jovem Shmuel...


                






















segunda-feira, 11 de fevereiro de 2019

O Deus de Caim.





O DEUS DE CAIM

         Ele não foi um escritor maldito. Nem um poète maudit como Rimbaud, Verlaine, Poe ou Leminski. Ele fez parte dos olvidados, os esquecidos, os injustiçados. Sem reconhecimento pelo grande público leitor.  Mas Ricardo Guilherme Dicke foi aclamado por Guimarães Rosa, Jorge Amado, Antônio Olinto e outros escritores do Pós-Guerra. No fim da vida viveu no ostracismo em terras mato-grossenses, recluso, averso a entrevistas, a badalações literárias. Admirado por Hilda Hilst, foi tradutor, jornalista, artista plástico, professor. E com uma produção literária relativamente extensa. Destaco Cerimônias do Sertão e Deus de Caim - o qual acabo de ler.
        José Saramago escreveu o seu Caim com um viés humorístico, criativo e amplamente fora das narrativas bíblicas. Deus deu o castigo a Caim depois de "o ter expulsado do fatídico vale onde o pobre abel para sempre ficara. Sem nada para comer, sem uma sede de água salvo aquela que, por milagre, veio a cair finalmente do céu quando as forças da alma já de todo minguavam e as pernas ameaçavam ir-se abaixo..."
          Machado de Assis também inspirou-se em fatos bíblicos para expor a rixa entre irmãos no seu clássico Esaú e Jacó, transportando a disputa para o Rio de Janeiro do fim do século dezenove. A briga entre eles - os irmãos contenciosos - inicia-se mesmo no ventre da mãe e perduram até à idade adulta, passando por embates morais, políticos e financeiros. 
           Em Dois Irmãos, o escritor amazonense Milton Hatoum situa os irmãos gêmeos na Amazônia em pleno regime militar. A mãe dos irmãos litigiosos desempenha um papel primordial na moderação dos rebentos raivosos. Como uma Eva sem pecado, uma Maria Madalena sem os sete demônios, uma religiosa talvez sem fanatismo, curada pela intenção pacifista.
             O longo romance que acabo de ler no entanto me surpreende. Não apenas pelo o estilo literário seco, árido, pletora de neologismos, emulando  por vezes com certo voluntarismo Guimarães Rosa, longe de ser subserviente, mas com luz própria. Lançado há mais de meio século, a história da disputa entre os dois irmãos, aqui nomeados também de origem bíblica, Lázaro e Jônatas competem a mesma mulher, Minira. É daí que a contenda exacerba-se e Jônatas esfaqueia Lázaro, levando-o a um certo estado de catalepsia, julgado morto para mais tarde ressuscitar. 
            Dicke então descreve a escuridão  humana, a inveja, o ciúme, as desavenças, a cobiça, as intrigas do casamento em uma sociedade do interior do Mato Grosso, a imaginária cidade de Pasmoso, onde a moral, a ética  e o comportamento são regidos pela primazia do vil metal. Sem criar spoiler, um certo dia a casa grande desaba, afunda em um incêndio monstruoso como A Queda da Casa de Usher  de Poe, levando todos juntos às cinzas, em especial o amaldiçoado Jônatas. E Lázaro que ressuscita chora a morte do irmão agressor. O pecador fora punido - num sofrimento atroz - junto à mulher que amara antes de morrer queimado, "a mulher que dividira a morte com ele como se divide uma fruta".