O DEUS DE CAIM
Ele não foi um escritor maldito. Nem um poète maudit como Rimbaud, Verlaine, Poe ou Leminski. Ele fez parte dos olvidados, os esquecidos, os injustiçados. Sem reconhecimento pelo grande público leitor. Mas Ricardo Guilherme Dicke foi aclamado por Guimarães Rosa, Jorge Amado, Antônio Olinto e outros escritores do Pós-Guerra. No fim da vida viveu no ostracismo em terras mato-grossenses, recluso, averso a entrevistas, a badalações literárias. Admirado por Hilda Hilst, foi tradutor, jornalista, artista plástico, professor. E com uma produção literária relativamente extensa. Destaco Cerimônias do Sertão e Deus de Caim - o qual acabo de ler.
José Saramago escreveu o seu Caim com um viés humorístico, criativo e amplamente fora das narrativas bíblicas. Deus deu o castigo a Caim depois de "o ter expulsado do fatídico vale onde o pobre abel para sempre ficara. Sem nada para comer, sem uma sede de água salvo aquela que, por milagre, veio a cair finalmente do céu quando as forças da alma já de todo minguavam e as pernas ameaçavam ir-se abaixo..."
Machado de Assis também inspirou-se em fatos bíblicos para expor a rixa entre irmãos no seu clássico Esaú e Jacó, transportando a disputa para o Rio de Janeiro do fim do século dezenove. A briga entre eles - os irmãos contenciosos - inicia-se mesmo no ventre da mãe e perduram até à idade adulta, passando por embates morais, políticos e financeiros.
Em Dois Irmãos, o escritor amazonense Milton Hatoum situa os irmãos gêmeos na Amazônia em pleno regime militar. A mãe dos irmãos litigiosos desempenha um papel primordial na moderação dos rebentos raivosos. Como uma Eva sem pecado, uma Maria Madalena sem os sete demônios, uma religiosa talvez sem fanatismo, curada pela intenção pacifista.
O longo romance que acabo de ler no entanto me surpreende. Não apenas pelo o estilo literário seco, árido, pletora de neologismos, emulando por vezes com certo voluntarismo Guimarães Rosa, longe de ser subserviente, mas com luz própria. Lançado há mais de meio século, a história da disputa entre os dois irmãos, aqui nomeados também de origem bíblica, Lázaro e Jônatas competem a mesma mulher, Minira. É daí que a contenda exacerba-se e Jônatas esfaqueia Lázaro, levando-o a um certo estado de catalepsia, julgado morto para mais tarde ressuscitar.
Dicke então descreve a escuridão humana, a inveja, o ciúme, as desavenças, a cobiça, as intrigas do casamento em uma sociedade do interior do Mato Grosso, a imaginária cidade de Pasmoso, onde a moral, a ética e o comportamento são regidos pela primazia do vil metal. Sem criar spoiler, um certo dia a casa grande desaba, afunda em um incêndio monstruoso como A Queda da Casa de Usher de Poe, levando todos juntos às cinzas, em especial o amaldiçoado Jônatas. E Lázaro que ressuscita chora a morte do irmão agressor. O pecador fora punido - num sofrimento atroz - junto à mulher que amara antes de morrer queimado, "a mulher que dividira a morte com ele como se divide uma fruta".
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