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sexta-feira, 5 de junho de 2015

sábado, 4 de abril de 2015

A VIGÍLIA DE MURAKAMI

                             A Vigília de Murakami



A protagonista deste conto de Murakami revela de primeira: “ É o décimo sete dia que não consigo dormir. Não se trata de insônia. Pois dela eu entendo um pouco.” Sem saber o nome dela, tampouco de seu marido e filho, vamos conhecendo a sua vida simples, porém dotada de uma rotina atroz,  através de um relato denso dos conflitos existenciais constantes, e que desemboca num epílogo surpreendente. Haruki Murakami, um dos maiores escritores japoneses da atualidade, enreda uma história pungente e cativante que nos toma apenas uma sentada para desfazer o nó górdio central deste livro.  Sono – Ed. Objetiva, 115 págs. – é um conto inédito no Brasil, com belas ilustrações de Kat Menschik.
     A narradora estabelece fronteiras em sua vida atormentada. Quer voltar ao passado, quer entender o significado da vida com este átimo de renovação: a chegada inesperada da longa vigília. E ela explica: “De um modo geral, todos os dias eram praticamente iguais, uma mera repetição...Às vezes eu pensava, que vida é essa...E eu me sentia simplesmente assustada. Assustada pelo fato de pertencer a essa vida e ter sido tragada por ela. Assustada por constatar que minhas pegadas foram levadas pelo vento sem que eu tivesse tempo de me virar e constar a existência delas.”
Em momentos cruciais destes longos dias e noites sem dormir, ela se desespera e busca a leitura compulsiva de Anna Karenina, o monumental livro de Tolstoy. E repete a leitura inúmeras vezes com obsessão. Busca os segredos em seus meandros, as respostas para os dilemas de sua mudança repentina. E em cada resposta, ela diz, “descortina-se um novo segredo.” Em seu desejo infinito de mudanças, vagueia por lugares temerosos durante a noite da cidade onde mora.  Não teme a morte. Arregimenta um duelo constante. Expõe as chagas da vida como uma forma de enfrentamento. Um ato de suporte às mudanças. E de certa maneira as consegue. Confessa num momento de êxtase: “ Ninguém percebeu que mudei. Ninguém percebeu que eu não dormia, que eu estava lendo um livro extenso e que minha mente estava a centenas de anos, a milhares de quilômetros da realidade.”
Murakami, autor de livros essenciais como Norwegian Wood, Minha Querida Sputnik, Após o Anoitecer e vários outros desvenda aqui neste conto a imensa fragilidade do ser humano diante dos mistérios da alma. Mistérios muitas vezes sem resoluções à vista, inalcançáveis mesmo. Por isso, elabora um epílogo surpreendente, o qual fico impossibilitado de revelar para não extrair o cerne fundamental de todo o conto. Mas a expressão sublime está no seu questionamento –da protagonista – ao aproximar-se ao desfecho final: “ Será que eu poderia me considerar um exemplar único, uma precursora da espécie humana, que deu um salto na cadeia evolutiva?”

                                                                                             Ney Cayres




















segunda-feira, 30 de março de 2015



ANATOMIA DE UM MARATONISTA DIABÓLICO



    Com frequência repetia à sua namorada: “Um dia farei algo que mudará o sistema e então todos saberão meu nome e se lembrarão deste ato.”  Andreas Lubitz, copiloto da Germanwings, maratonista, cumpriu o horror engendrado nos labirintos de sua mente doentia ao jogar o Airbus 320 nas montanhas dos Alpes. O mundo jamais esquecerá que 149 seres inocentes foram mortos em segundos.
    Ainda jovem, com 14 anos de idade, Lubitz inscreveu-se  no clube de voo de sua cidade natal,  em Montauban, Luftorts Club Westenwald. Era um aluno obsessivo, dedicado, treinava como nenhum outro colega. Um maratonista da aviação. Para corroborar e externar esta obsessão, possuía em sua casa uma enorme quantidade de fotos de aviões, adesivos, logotipos da Luftansa, empresa aérea alemã de seus sonhos. “Um dia serei capitão, custe o que custar – dizia aos poucos amigos que o apelidaram de “Tomate”. Este legume que deseja ser uma fruta, e frequentemente alimentado por duas chamas.
    Andreas era filho de  um homem de negócios rico e uma professora de piano, classe média alta alemã. Vivia numa casa de meio milhão de euros, num subúrbio elegante e obteve o melhor do ensino alemão. De acordo com seus colegas de escola, “era tranquilo, educado e um pouco retraído, mas nada que chamasse atenção.” Porém, com a idade, os problemas psiquiátricos foram surgindo. Colegas de cursos de aviação nos Estados Unidos relatam casos de descontrole emocional e agressividade.
    Em certa época, a fim de amenizar os surtos de depressão, começou a praticar a corrida rústica. Logo, iniciou os treinamentos para  meia-maratona de Frankfurt, chegando a finalizá-la em 1h34min. Um resultado surprendente para a primeira competição de 21km. Mas ele queria voar mais alto. E treinou com afinco e obsessão para a Maratona Mittelrhein de 2009. Atravessou a linha de chegada percorrendo os 42km em 3h54min ao lado do pai, também um maratonista. Mais uma vez um feito excelente: sub-4 horas; aliás, o sonho de milhares de maratonistas mundo afora.
    Andreas Lubitz não era  só ambicioso, obsessivo, depressivo mas muitas vezes externava um complexo de inferioridade, agravado por último com os problemas de saúde e o temor de jamais atingir o objetivo final na empresa aérea em que trabalhava: queria ser capitão de voos transcontinentais. Segundo sua última namorada, que está grávida dele, acordava à noite com pesadelos e gritos lancinantes. Então, como vimos, uma associação de fatores o levou a este ato extremo de loucura inimaginável e inexplicável. Não obstante, de uma perspectiva analítica C.G. Jung escreve em O Eu e o Inconsciente que um indivíduo assim “embora fale de sua inferioridade, no fundo não acredita nela. Brota de seu íntimo uma convicção obstinada de seus méritos não reconhecidos e isto o torna vulnerável à menor desaprovação, emprestando-lhe esse ar contrariado dos que são incompreendidos e lesados em suas justas pretensões. Deste modo, vai alimentando um orgulho mórbido é um descontentamento arrogante, cuja existência nega por todos os meios, mas pelos quais aqueles que o cercam têm que pagar muito caro.”
    Se, por outro lado, houvesse a possibilidade de um julgamento não apenas divino, certamente um incisivo promotor de justiça aqui na Terra lhe exigiria explicações para uma ato inexplicável e absurdo como este. E a resposta poderia talvez vir tão evasiva quanto do assassino Mersault de  Albert Camus em O Estrangeiro: “respondi rapidamente, misturando um pouco as palavras e consciente do meu ridículo, que fora por causa do sol. Houve risos na sala.” É...os atos extremos de loucura são realmente inexprimíveis.