A Vigília de Murakami
A protagonista deste conto de Murakami revela de primeira: “ É o décimo sete dia que não consigo dormir. Não se trata de insônia. Pois dela eu entendo um pouco.” Sem saber o nome dela, tampouco de seu marido e filho, vamos conhecendo a sua vida simples, porém dotada de uma rotina atroz, através de um relato denso dos conflitos existenciais constantes, e que desemboca num epílogo surpreendente. Haruki Murakami, um dos maiores escritores japoneses da atualidade, enreda uma história pungente e cativante que nos toma apenas uma sentada para desfazer o nó górdio central deste livro. Sono – Ed. Objetiva, 115 págs. – é um conto inédito no Brasil, com belas ilustrações de Kat Menschik.
A narradora estabelece fronteiras em sua vida atormentada. Quer voltar ao passado, quer entender o significado da vida com este átimo de renovação: a chegada inesperada da longa vigília. E ela explica: “De um modo geral, todos os dias eram praticamente iguais, uma mera repetição...Às vezes eu pensava, que vida é essa...E eu me sentia simplesmente assustada. Assustada pelo fato de pertencer a essa vida e ter sido tragada por ela. Assustada por constatar que minhas pegadas foram levadas pelo vento sem que eu tivesse tempo de me virar e constar a existência delas.”
Em momentos cruciais destes longos dias e noites sem dormir, ela se desespera e busca a leitura compulsiva de Anna Karenina, o monumental livro de Tolstoy. E repete a leitura inúmeras vezes com obsessão. Busca os segredos em seus meandros, as respostas para os dilemas de sua mudança repentina. E em cada resposta, ela diz, “descortina-se um novo segredo.” Em seu desejo infinito de mudanças, vagueia por lugares temerosos durante a noite da cidade onde mora. Não teme a morte. Arregimenta um duelo constante. Expõe as chagas da vida como uma forma de enfrentamento. Um ato de suporte às mudanças. E de certa maneira as consegue. Confessa num momento de êxtase: “ Ninguém percebeu que mudei. Ninguém percebeu que eu não dormia, que eu estava lendo um livro extenso e que minha mente estava a centenas de anos, a milhares de quilômetros da realidade.”
Murakami, autor de livros essenciais como Norwegian Wood, Minha Querida Sputnik, Após o Anoitecer e vários outros desvenda aqui neste conto a imensa fragilidade do ser humano diante dos mistérios da alma. Mistérios muitas vezes sem resoluções à vista, inalcançáveis mesmo. Por isso, elabora um epílogo surpreendente, o qual fico impossibilitado de revelar para não extrair o cerne fundamental de todo o conto. Mas a expressão sublime está no seu questionamento –da protagonista – ao aproximar-se ao desfecho final: “ Será que eu poderia me considerar um exemplar único, uma precursora da espécie humana, que deu um salto na cadeia evolutiva?”
Ney Cayres
Nenhum comentário:
Postar um comentário